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Raquel Lima Damasceno
Titular da Cadeira Nº 33 - Patrono: Antônio Magalhães Martins

            Sai com um vazio no estômago. Apesar de ter tomado um pouco do café ralo e doce, mastigando alguma coisa sem sabor, aquilo somente me fazia sentir vontade de algo mais saboroso e fornido, pois reforçava a fome que eu sentia.

            Eram horas mortas de um domingo morno. Mais tarde seria hora daquela revista eletrônica que servia apenas para apavorar com umas notícias trágicas ou soturnas, alternadas por algum tema leve, seja ele um novo clip musical, um filme ou entrevista com algum artista ainda não desconstruído pelas redes sociais digitais, que ainda não existiam.

            Mas antes dessa mesmice semanal televisiva, havia um momento de distração: comparecer ao catecismo. Era um misto de momento ameno com situações de receio. Ameno porque encontraria uma parte da meninada pelo caminho, e eu poderia aproveitar para esquecer um pouco da minha rotina, enquanto me divertia com alguma lorota ou arte aprontada durante nosso trajeto. Receio porque, no catecismo, vinham as temíveis ameaças da catequizadora, apavorando a consciência da garotada que iria fazer a Primeira Comunhão. Até hoje, homem feito, sinto meu peito de menino apertar ao lembrar daquela sensação.

            Enquanto não chegava ao local do catecismo, e nem encontrava a garotada pelo caminho, momento em que eu me transmutava em um alegre brincalhão, tinha que seguir sentindo o gosto amargo das coisas que me incomodavam.

            Os pensamentos iam e vinham coincidindo com a alternância das texturas das paredes das casas, que eu sentia enquanto meus braços esticados deslizavam os dedos naquelas estruturas. Ora eram paredes caraquentas, cobertas com cimento salpicado; ora eram paredes mais frias, feitas com mosaicos coloridos; ora eram paredes pintadas com cores já esmaecidas pelo efeito da luz solar. Em cada uma daquelas casas, vinha uma sensação diferente...

            Passava pela casa que tinha paredes pintadas e imaginava o bolo de domingo que haviam assado e estava sendo degustado pela família e algum visitante afortunado; passava pela casa com parede de tijolinhos pintados e imaginava o quão reconfortante deveria ser deitar no chão daquela casa que, com certeza, teria um piso frio e limpinho, formado por cerâmicas esmaltadas, lisas, mantidas com cera aplicada com moderna enceradeira. Enquanto fantasiava sobre aqueles locais minha barriga roncava e minha boca salivava.

            Eu era um garoto vindo de um distrito, para morar na sede do município, em busca de dar continuidade ao estudo que parou quando o grupo escolar foi desativado, valendo-se da casa de um padrinho, como teto na cidade e, em troca, servia de menino de recado, saco de pancada e chacota para os colegas citadinos. Convivia com a humilhação, a despeita, a revolta, a ambição e o remorso por saber ter que sentir gratidão.

            Esse misto de sentimentos tornara-se a semente de um contínuo incômodo espiritual. Eu já estava próximo dos meus 11 anos, mergulhado em crise de consciência por minhas revoltas, sem somar as sensações que um pré-púbere tem nessa etapa da vida. Até enquanto vivi com meus pais, recebi uma criação rígida de princípios e valores religiosos. Ao ir morar, aos 9 anos, na cidade, deparei-me com um ambiente em que havia menos interesse em minha formação, embora mais controle sobre minha dominação. Sei que naquela época, mesmo que tivesse convivido diretamente com meus pais, não receberia certas informações mas, pelo menos, talvez teria alguma orientação indireta do meu pai. Enfim, essa era a configuração desse pivete que, por dever de cristãos, a família que o recebera lhe enviou para cumprir a etapa de um rito. Assim, a família também esperava que a sociedade a visse como instrumento que encaminhava e aplainava um bom caminho para o garotinho que acolheu.

           Isso não seria de todo mentira. Independente das motivações dos grupos sociais e os componentes que desempenham seu papel, eu era um garoto inseguro, tanto pela sensação de está vivendo de favor e está à sorte do meu destino; bem como assombrado pelo que imaginava ser cobiça e cupidez, mal sabendo que não passava do sentimento de vontade de uma vida mais estável e o resultado de hormônios no corpo de um garoto.

           Está sendo catequizado por uma pessoa ameaçadora também não ajudava muito a situação. Aquela mulher de pernas grossas e pelos pontudos, que afloravam logo acima do seu tornozelo, era uma versão alegórica de inquisidores que ameaçavam com o fogo do inferno eterno a crianças em que deveriam está conquistando com as graças do céu, ou com dicas para uma vida devota ao bem.

          Eu era um menino, longe do amor materno, que quando chegava em casa e ficava no cantinho da sala da família que me acolheu, assistindo a TV sem fazer muito movimento, para não sentirem a presença de alguém que invadia a privacidade daquele lar, ia dormir assombrado tanto pelas notícias alarmantes e sensacionalistas daquela revista eletrônica semanal, tanto pelas ameaças veladas do fogo eterno feitas por aquela catequista que mais assombrava, querendo ganhar crentes mais pelo medo do que pela fé. O resultado eram os contínuos pesadelos que muitas vezes ocorriam no meu sono.

         No momento em que eu começava a me apavorar, lembrando do que estava por vir naquele dia, eu já estava no cruzamento da pracinha, antes do pátio daquela igrejinha e encontrava o magote de meninos que também iam ao catecismo. Naquele breve instante, esquecia a fome de uma merenda gostosa, a falta do carinho materno, a necessidade da orientação de um pai e a carência de um olhar dos meus acolhedores e ia logo correr brincando de “joão atrepa”, nos bancos daquela praça, enquanto aguardava os minutos para o início da tortura mental feita pela catequista.

         Na conversa indireta de uma das crianças que estavam sendo “instruídas” espiritualmente, também naquele catecismo, soube que a turma dele era muito boa. Aprendiam canções religiosas e decorar as rezas era bem mais fácil com as brincadeiras e jogos que sua catequista proporcionava. Pelo jeito eu tive o azar de cair na instrutora errada. Mas, vou ser franco, apesar de toda a rispidez e postura intimidadora da minha catequista, haviam momentos até interessantes em que a instrutora, instigada pelos meus parceiros de turma, fazia seus relatos de penitências dadas nas confissões como mini contos de terror. Tinha a penitência de andar em volta do muro do cemitério, à meia noite, rezando para as almas penadas; havia a penitência de cada sexta feira ir ajoelhar-se à porta da igreja, também à meia noite, rezando pela salvação eterna ou a penitência da pessoa que foi condenada a sair pela cidade vestindo uma túnica encapuçada, uma vez por mês, de duas às três horas da manhã, segurando uma pequena cruz e fazendo a oração de Santa Gertrudes, das almas, do descanso eterno e a Ladainha pelas Almas do Purgatório.

         Desses exemplos de penitências, lendas eram debatidas como plenas verdades. Assim, a catequista pegava a deixa e destacava a importância da nossa preparação para a Primeira Comunhão nos fazendo refletir qual pecado mortal nos levaria àquelas terríveis penitências. Pobres crianças que ficavam aterrorizadas. Ao invés de serem convidadas a refletir sobre seus pequenos delitos, ou pensamentos que os levassem a mau comportamento, eram atormentados pela possibilidade de uma temerosa penitência que mais parecia uma maldição do que uma conversão.

         Meu coração infantil ficava pesaroso. Meu raciocínio era levado a sondar pecados que eu não os tinha, ao invés de semear bons pensamentos e atitudes que deveria ter. Essa agonia acompanhava-me por todo o dia e, muitas vezes, durante alguns momentos da semana, fazendo com que aquela fase, que deveria ser para pensamentos santificados fosse mortificada pela crueldade de uma doutrinadora sádica.

        Complementando minhas aflições, eu incluía no elenco dos personagens que atormentavam meu atazanado juízo, o padre da paróquia. Aos domingos, pela manhã, os participantes do catecismo deveriam, obrigatoriamente, fazerem-se presentes na missa. Na ocasião, o pároco caprichava em seus verborrágicos sermões, com conteúdo acusatórios, proferidos com uma voz estridente que ribombava por toda a nave, em ecos que atingiam de distintas maneiras seus ouvintes. Imagine um menino já impressionado com as ameaças ao fogo do inferno.

        Com esses receios fui sendo preparado para a minha Primeira Eucaristia. Todas essas sensações eram reforçadas durante o catecismo, realizado na igrejinha, o primeiro templo católico da cidade. O ambiente, à época, insalubre, com estrutura comprometida e odor de fezes de morcego reforçavam a sensação asfixiante daquela situação que infernizava aquele período da minha vida. O domingo para mim era uma provação.

        Alguns dirão o quanto eu parecia sensível, ingênuo ou exagerado em relação a esses sentimentos. Eu diria que era um garoto suscetível ao pavor, frente minhas condições familiares, afetivas e etária, levando-me a uma estafa psicológica, impulsionada pela falta de preparo e de trato daquela insensível catequista. Nesse contexto, eu parecia uma panela de pressão a ponto de explodir com um colapso.

       E ia chegando o fatídico dia da confissão. A cada dia, ao buscar grandes pecados na consciência de um garoto de 10 anos, surgiam pensamentos ditos impuros ou de desobediência, equivalentes à minha idade, sem encontrar nenhum ato que, de fato, substanciasse a tentação mental, provocada pela orientação torta que recebia naquele catecismo punitivo.

        Os dias iam passando e, depois de muito colocar e retirar prováveis pecados que deveria relatar no confessionário, consegui elencar uns cinco que poderiam ser tidos como pecados dignos para serem censurados e esconjurados conforme sinalizava meu código de conduta, limitado ao meu conhecimento de mundo até então, e o código moral que me fora apresentado, juntamente com os mandamentos disseminados pela Santa Madre Igreja.

        Finalmente chegou o dia da temida confissão. Estava eu, sentado no banco da matriz, esperando meu momento de ser chamado à fila. Primeiro, foram chamados os garotos da turma da catequista que ensinava músicas e jograis para aprenderem logo a reza. Até nisso tinham sorte! Eu sentia que seria excomungado logo que o padre ouvisse meus terríveis pecados pois, sim, meus pecados deveriam ser os piores visto que, ao me comparar com os outros garotos, por mais traquinos, finórios, pérfidos que fossem, não seriam páreos para mim pois, até no momento da confissão, eu apontava o dedo para o pecado do meu semelhante. Eu deveria ser o pior menino, pois cobiçava as coisas alheias; queria comer uma refeição saborosa, sem torcer para que um pedaço de bife sobrasse no almoço, para também servirem no meu prato, sem a necessidade de estar sempre comendo ovo ou o rejeito que fora colocado para temperar o feijão; queria, um dia, poder comer um pedacinho de bolo amanteigado... quer mais pecado que esse da gula (que a catequista destacou como pecado capital)! Eu, deveria ser o maior pecador, pois ansiava por um chão frio pra deitar, e não aquele chão caraquento do quartinho dos fundos, que foi reservado pra mim, próximo daquele banheiro inacabado que, nos momentos de aperto, todos usavam e deixavam suas urinas acumuladas, sem dar descarga, ou espalhadas pelo chão, resultando em um cheiro ardido que se alastrava pelo ambiente e invadiam minhas narinas quando eu conseguia me recolher no quarto, durante o dia, buscando fugir um pouquinho dos mandados, para dar conta das tarefas da escola e brincar um pouquinho com as tampinhas de refrigerantes que eu conseguia juntar, para trocar por um boneco de borracha de super herói naquela tão disputada promoção.

        Sim, eu devia ser o menino mais pecador. Tudo eu queria. O bife, o bolo, o boneco e um chão geladinho para descansar. Meu pecado era mortal! Comparava-me com aquelas felizes crianças, que nem sabiam se estavam fazendo algum mal humilhando colegas que iam para a escola com o tênis conga rasgado. Eu os estava julgando. Eu devia ser o pior menino, pois não suportava ouvir no catecismo sobre aquelas penitências ameaçadoras e somente eu parecia notar o tratamento diferenciado que a catequista dava para algumas crianças “de família”. Eu devia ser uma criança maligna pois invejava a outra turma que aprendia as orações cantando, em jograis, com a doçura da condução de uma catequista que parecia exalar bondade. Contam até que foi ela que presenteou uma garotinha, sem condições financeiras, com um vestidinho de renda para usar no dia da comunhão.

        Enquanto eu repassava todos os pecados que eu imaginava ser o único detentor dessas fraquezas, um sopro de satisfação me veio quando eu lembrei que ganhei uma camisa branca nova. Nova pra mim, pois foi doação de uma camisa já usada por um parente distante, em sua crisma e, devido a idade do anterior proprietário, a camisa ficou maior em mim, mas aquele tecido era de uma maciez que eu nunca tinha sentido, tipo de flanela. Daí meu pensamento resvalou para o pecado da vaidade, meu Deus, minha consciência me torturava até naquele momento...

       Comecei a suar, um suor frio, enquanto o coração batia descompassadamente. Ouvi algo e notei que fomos chamados. A segunda turma deveria perfilar-se e aguardar em ordem, ao lado do confessionário. Levantei tonto e devo ter sido a sétima criança da fila. À medida que chegava a vez de quem estava na minha frente, eu tentava recordar a oração Pequeno Ato de Contrição, mas, no meio dela, eu era interrompido pelo meu olhar que acompanhava quem acabara de ser dispensado, para prosseguir com sua penitência.

          Sabia que para a maioria seria rezar algumas orações mas, para mim, que tipo de penitência pública eu deveria pagar? Seria o condenado a sair pelas madrugadas nas ruas da cidade? Ou seria quem daria as voltas no cemitério? Meu pensamento ia e vinha. Ao chegar mais próximo da minha vez no confessionário olhei para minha ameaçadora catequista. Para minha surpresa, ela lançou-me um olhar encorajador acompanhado de um leve sorriso. Apesar de eu ter ficado um pouco confuso, fez uma certa diferença por me sentir acarinhado. Fazia muito tempo que eu não sabia o que era isso. O último lampejo que tive disso foi quando entreguei uma encomenda do meu padrinho a um comerciante e, ao dar as costas, ele fala:

- Toma, menino! – instintivamente, fechei os olhos, achando que receberia uns petelecos, como alguns costumavam fazer como uma brincadeira de mau gosto.

             Para minha surpresa, ao virar-me quase agachando-me para não ser surpreendido, o comerciante agraciou-me com três bombons que guardei no bolso do meu calção mas que, infelizmente, por ter um buraco nele, acabei perdendo uma dos valiosos doces. Naquele dia, ao conseguir recolher-me no quartinho, deliciei-me com um dos bombons e guardei o outro, escondidinho, para outra ocasião.

            Após esse lampejo de recordação, tento retornar à realidade procurando concentrar-me na oração que deveria fazer no confessionário, logo que chegasse aos pés do padre: “Meu Deus, eu me arrependo de vos ter ofendido pois sois tão bom e amável...” e agora?! Havia esquecido a segunda parte. O que seria de mim?!! Haviam apenas duas crianças à minha frente, antes de chegar à minha vez. O suor aumentou. Meu coração batia descompassado e uma crise de pânico começou a tomar conta de mim.

           Na minha mente um trágico filme começou a tomar forma. No enredo, ao chegar a minha vez e quando eu começasse a balbuciar a oração, o padre notaria meu esquecimento. Daí, ele abriria a porta do confessionário, chamaria minha catequista e, na frente de todos, pediria para ela me tirar dali e que eu somente retornasse quando soubesse rezar. Mas, não contente com essa cena, meu pensamento me levou para um dos dias do catecismo quando, naquela igrejinha, alguém disse que se alguém esquecia a reza era o diabo atentando e, o pior de tudo, é que aquela catequizadora confirmou. E agora?!!! Piorou tudo! Eu estava a ponto de uma síncope.

          Até hoje, ao lembrar desse momento, tenho vontade de por aquele menininho no colo e acalmá-lo. Fico a me perguntar por que aquela mulher não ponderava, dizendo que o esquecimento poderia ser resultado de um mero nervosismo. Psicologicamente eu estava em trapos e a ponto de ter um treco. Que crueldade alguns adultos, indiretamente ou não, fazem com as crianças sem perceber o quanto as estão maltratando. Quão equivocado é o sistema que procura conquistar ovelhas pelo medo e não pelo amor. Alguns poderão pensar que os outros colegas não estavam passando por isso mas, quem sabe? Quem estava na pele dos outros? E, mesmo se a maioria estivesse aquém desse sentimento, talvez quem tinha mais sensibilidade ou consciência sofresse mais com essa forma de catequisar afinal, eu levava a sério todas as ameaças, maldições, ou seja lá o que estavam incutindo na minha cabeça.

           Naquele momento desesperador meu pensamento foi levado para alguns desenhos que tinham no livreto do catecismo. Como eu gostava de apreciar aquelas figuras. E, foi somente, nesse átimo de tempo que meu coração foi acalmando e a lembrança da segunda parte da oração voltou à minha memória.

          Percebi que a última criança, antes de mim, já estava ajoelhada no confessionário. Enquanto ela estava lá, fiquei repetindo a oração como um mantra, com o intuito de quando fosse já ajoelhar-me rezando aquela oração. E assim foi feito, logo que a garota saiu, fui até ao confessionário e comecei a fazer a oração. O Padre perguntou se antes eu havia feito o sinal da cruz, confirmei que sim (mas não havia feito). Em seguida, o padre pediu para eu relatar meus pecados. Comecei dizendo que havia mentido pra ele pois, de fato, não havia feito o sinal da cruz. O padre fez um muxoxo e mandou eu dar continuidade ao meu relato. Por um breve segundo, eu esquecera todos os pecados que havia identificado para contar ao padre. Minha nossa, justo naquele momento! Seria o diabo atentando novamente?! Comecei a relatar alguns pecados, que eu imaginava identificar em outros meninos e, quando havia falado uns quatro, disse ao padre que, mais uma vez, eu estava mentindo, pois havia esquecido o que eu ia contar a ele.

        O padre demonstrou certa impaciência, fez umas duas ou três perguntas a mim que eu deveria responder com um sim ou não e, no final, deu-me o perdão junto com uma pequena penitência: dois Pai Nosso e três Ave Maria. Aliviado, levantei-me tão rápido que senti certa tontura.  Fui direto aos bancos e rezei com todo afinco, pedindo que qualquer pensamento ruim ficasse longe de mim, pois queria está puríssimo na minha Primeira Comunhão.

       Quando aquela provação acabou, estava no finalzinho da manhã. Todos voltaram para suas casas pois, à tardinha, seria a missa onde receberíamos nosso segundo sacramento.

       Chegando em casa fiquei mais leve ainda. Meu padrinho e o restante da família estavam mais gentis comigo. Talvez querendo me mostrar que eles também eram bons cristãos. Ah, lá estava eu, mais uma vez, apontando a atitude dos outros. Eu tinha que afastar aquele pensamento pois não queria recomeçar aquele ciclo de julgamento e culpa.

       Depois do almoço fui para meu quartinho, quando minha madrinha apareceu com um pacote. Surpreso, comecei abrí-lo e vi uma linda calça cinza, novinha. Ela disse que era um presente para eu usar na minha primeira comunhão, havia comprado durante a manhã, enquanto eu estava na matriz, para a confissão. Sabia que a calça servia em mim pois havia levado minha calça do colégio para comparar o tamanho e decidiu comprar um tamanho maior, pois sabia que minha farda já estava ficando apertada, mas que se a nova calça ficasse muito frouxa eu não me preocupasse, pois a mesma vinha acompanhada com um cinto de tecido elástico.

        Meio sem jeito agradeci, intimamente censurando-me pelas vezes que fiquei com raiva pelo tratamento distante que mantinham comigo. Mas fazer o que, um item material não substitui carinho. Mas aquele momento não era hora para eu ser mal agradecido até porque, na verdade, eu estava empolgado para experimentar a calça nova. Agora tinha uma calça social, além da calça do fardamento.

       Minha madrinha saiu recomendando que dali a pouco eu tomasse um banho caprichado, lavando os cabelos e lembrando de tirar o ceroto das orelhas.

        No horário previsto, eu já estava pronto e fui à igreja na companhia dos meus padrinhos e de dois dos seus filhos adolescentes, e sentindo-me importante.

        Ao chegar à matriz, fui sentar-me no lugar reservado às crianças que fariam a Primeira Comunhão. Cada um bem arrumado, à seu modo e de acordo com suas condições financeiras. Conforme a orientação da catequista, tínhamos que permanecer em oração silenciosa enquanto aguardávamos o início do ritual e atentos à leitura do missal no qual indicava o momento da nossa participação quer por falas, orações e papeis. Um casal de crianças havia sido escolhido para nos representar no ofertório, levando símbolos da Eucaristia. Chamaram a menina loirinha e o garoto filho do juiz local. Surpresa nenhuma, para ninguém. Nessas horas os escolhidos parecem ser os socialmente privilegiados ou que, pelo menos, correspondam a uma beleza idealizada, conforme os padrões vigentes. Ainda bem que não pensei nisso na hora, foram conceitos que somente fui perceber ao longo do tempo.

       Enquanto eu aguardava, comecei a pensar o quanto estava feliz com a calça nova e o quanto tinha sido injusto, logo que cheguei à casa dos meus padrinhos depois da confissão, achando que eles estavam com fingimento de bons cristãos, apenas porque queriam se demonstrar bondosos para eu não ser o único “puro” na casa por ter me confessado. Ora, ora, começou novamente a síndrome do pensamento acusador... pronto. Joguei por terra minha confissão. Agora havia pecado novamente e, o pior, iria fazer a comunhão e, no exato momento em que colocasse a hóstia na boca, ela iria virar carne sangrando, na frente de todos, que iriam ver o quanto pecador eu era! Haja conflito espiritual atentando uma criança...     

             Cerrei meus olhos, fechei a boca, dobrei a língua e, por estar com as mãos postas, apertei-as através dos dedos entrelaçados. Um sentimento de decepção por meus pensamentos, incessantemente inconvenientes, tomaram conta de mim. Nessa momento que parecia querer suplantar minha breve satisfação anterior, a senhora que tocava órgão iniciou os acordes de uma canção que sempre me tocava. Foi como um bálsamo!

            Um coração para amar, pra perdoar e sentir

Para chorar e sorrir, ao me criar Tu me destes

Um coração pra sonhar, inquieto e sempre a bater

Ansioso por entender as coisas que Tu dissestes

Eis o que eu venho te dar

Eis o que eu ponho no altar

Toma, Senhor, que ele é Teu

Meu coração não é meu...”

 

            Alguns minutos depois eu já estava na fila para a minha Primeira Comunhão. Fui com um sentimento de júbilo. Estava tranquilo, envolvido pelo ritual e seu significado. Após comer e beber a hóstia e o vinho, ao virar-me para seguir pro meu assento, vi o vulto dos meus pais, em pé, na lateral dos bancos, junto com outros fiéis que não haviam encontrado espaço para sentar. Foi um agradável susto. Sorri, desconfiadamente, para eles.

            Após o término da cerimônia, um grupo de crianças e suas famílias ficaram em volta do padre, aguardando a vez de fazer uma fotografia com ele. Eu fui no rumo dos meus pais que logo me abençoaram e, em seguida, fomos ao encontro dos meus padrinhos. Eles apontaram para nos encontrar próximo ao grupo de crianças e, chegando lá, recomendaram-se ao fotógrafo para fazer um registro meu com o padre.

            Entrei na fila aguardando minha vez e, quando chegou o momento, timidamente fiquei ao lado do padre, segurando o terço e a vela.

            Ao retornar à casa dos meus padrinhos, juntamente com os meus pais, havia um bolinho e guaraná, mas que foi servido após a sopa. Apesar da conversa amigável, havia um pouco de tensão porque achava que bastava eu para incomodar meus padrinhos com a minha presença e, agora, até meus pais teriam que dormir lá, pelo menos àquela noite.

            Eu e minha família fomos deitar no meu quartinho. Meu pai parecia um pouco envergonhado por não ter colaborado pelo refrigerante, pelo bolo e pela fotografia. Minha mãe parecia preocupada, por saber que seu filho, tão novo, estava morando na casa dos outros, como um agregado para fazer pequenos serviços. Eles sabiam que não haviam maus tratos, mas somente a gente sabe das pequenas coisas, do tratamento diferenciado e das pequenas humilhações aos quais eu poderia está propenso. Mas eu não era a única pessoa na Terra a ser sujeitado a essa situação.

           No outro dia era domingo, fomos todos juntos para a casa dos meus pais, inclusive meus padrinhos, exceto seus filhos que iriam para o aniversário de uma amiga. Lá, pude ficar um pouco mais a vontade, embora já não me sentisse de todo pertencente aquele lugar. Quatro dos meus irmãos ainda moravam lá, os outros três, mais velhos, há algum tempo moravam em grandes cidades. Pedro e Milton estavam no Rio de Janeiro, um trabalhava de garçom e outro na construção. Eliane estava na capital do nosso estado, foi ser babá. Dos quatro que ficaram, duas eram meninas de 14 e 8 anos e dois eram meninos, um de 12 e o caçula de 6 anos. Glória, Nice, Júlio e Roberto eram seus respectivos nomes.

         Fiquei orgulhoso porque tivemos um farto almoço, com galinha à cabidela e, dentre os acompanhamentos, macarrão que não era muito comum pra nós, com KSuco, uma saladinha de verduras com tomate e, de sobremesa, doce de mamão verde com cravo. Acho que todos ficaram satisfeitos porque comeram bem.

        Quando o sol estava mais no poente tive que me despedir da minha família, pois retornaria com os meus padrinhos. Fui com um misto de saudade, mas também de alívio. Saudades porque sentia falta das conversas no alpendre, olhando as estrelas, às vezes comendo um pouco de raspa de rapadura com farinha e rindo ou assustado com algumas histórias que nossos pais contavam. Aliviado porque não ficaria me sentindo solitário ali, sem ver as novidades da cidade e com o sentimento de falta de perspectiva. Era um meninote, mas já tinha essa percepção de busca por melhorias aproveitando as oportunidades.

       Voltei. E acho que um pouco mais resiliente.

       Um mês depois, quando a foto do dia da minha eucaristia foi revelada, tive a grata surpresa de ver que o padre sorriu na imagem. Uma expressão que nunca tinha visto antes e nem imaginava que ele tinha a capacidade de sorrir, já que a imagem que repassava durante a missa era de uma pessoa carrancuda.

       Tempos depois, quando rememoro esses acontecimentos, ainda sinto aquelas sensações e tenho vontade de acalmar aquele menino, cheio de receio, de expectativas, de despeitas, de revolta, de esperança, de ingenuidade. Um caldeirão de emoções e dizer que o mais importante ele foi: verdadeiro, dedicado e bondoso. Conseguiu seguir o seu caminho e, honestamente, ter um cantinho para chamar de seu. Não mais dependia dos outros, nem estava sujeito a alguma exploração, mas reconhecia quem lhe ajudou.

      Já aquela catequista, soube que tempos atrás havia humilhado uma garota na frente de suas colegas. É, parece que algumas coisas não mudam...

      E sempre aos domingos, à medida do possível, procuro oferecer uma boa merenda para os meus filhos, pois a memória do estômago vazio nunca passa.